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NOSSO NORTE É O SUL

     Em célebre quadro dos anos 1940, o artista plástico uruguaio Joaquín Torres García (1874-1949) desconstruiu o sentido da organização do mundo por hemisférios e a hierarquia ideológica nele representada. O Norte como origem e centro da História e o Sul como colonização tardia do Ocidente. Progresso em cima e atraso embaixo, em termos corriqueiros. No quadro, Torres García inverte a imagem da América do Sul que costumeiramente encontramos nos livros e que, desde a infância, está impressa na mente das crianças alfabetizadas. A escolha da imagem e a estratégia de inversão (de ponta-cabeça) servem para atestar o gesto precoce, atrevido e utópico de inserção da América Latina no mundo civilizado. Atesta, ainda, a favor da preeminência da Geografia sobre a História, do espaço sobre o tempo e declara a ambiguidade do papel desempenhado pelas cartas geográficas na compreensão das nações colonizadoras se vistas da perspectiva pós-moderna.

    Ao analisar em Orientalismo - O Oriente como Invenção do Ocidente a biografia e a atuação política de Lorde Curzon (1859-1925), líder intelectual do colonialismo inglês, Edward Said anota ter sido ele o principal responsável pela grande transformação por que passa a geografia no mundo moderno. De algo "enfadonho e pedante", escreve Said, a geografia se transformou na "mais cosmopolita de todas as ciências". Sem dúvida, um dos bons exemplos do valor ideológico da geografia e da cartografia se encontra no processo de caracterização do aventureiro Marlow no romance O Coração das Trevas (1902), de Joseph Conrad. Na adaptação do romance por Francis Coppola, os mapas em papel são desenhados em luz pelo radar. Ao trazer a ação para a atualidade do Vietnã, o filme Apocalipse Now dramatiza a varredura do terreno por mapas eletrônicos que guiam os pilotos dos helicópteros e dos aviões de caça. O mundo como alvo. Das palavras do romance de Conrad se serviu T.S. Eliot no poema Os Homens Ocos.

    Proposta por Torres García, a inversão na representação clássica do mapa mundial descondiciona e desestabiliza o saber visual etnocêntrico do mundo. Diante da imagem precoce e atrevida do uruguaio, o espectador é levado a desconsiderar as antigas coordenadas históricas, sociais e econômicas, a fim de substituí-las pela experiência pós-colonial do Sul. Ao relegar o próprio da formação da América Latina e priorizar objetivamente o próprio da sua inserção tardia, a inversão proposta pelo quadro rodopia em torno dum traço que se alonga da esquerda para a direita no quadro. Representa a imutável linha do Equador.

    Ensaístas e artistas brasileiros sempre se lembram da frase do teólogo e historiador holandês Caspar Barlaeus (1584- 1648), desentranhada por Euclides da Cunha em À Margem da História, "ultra aequinotialem non peccavi" (não existe pecado abaixo do Equador). A frase foi retomada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Percebeu que nela se embutia a precaução contra o caráter perigosamente depravado do Sul: "Como se a linha que divide os hemisférios separasse também a virtude do vício". Por sua vez, seu filho Chico Buarque retoma a frase de Barlaeus a fim de inverter - à maneira de Torres García - o significado dos valores morais por ela expressos. Escute-se a canção Não Existe Pecado ao Sul do Equador, de preferência dita pela voz e o corpo de Ney Matogrosso.

     No seu livro Universalismo Construtivo (1941), Torres García explica a solução encontrada para o famoso desenho: "Pomos o mapa de cabeça pra baixo e então temos a ideia justa da nossa posição, e não como quer o resto do mundo". A agulha imantada da bússola funciona também de maneira matreira. O sol a brilhar ao Sul obscurece o Norte magnético. Desse tipo de representação, não está isento o nacionalismo, pois o Uruguai, no novo mapa, vem marcado com o evidente sinal de +.

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   O mais desembestado dos intelectuais a pôr por terra as pretensões nacionalistas ou neouniversalistas da América Latina será contraditória, ou paradoxalmente, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Diante das paisagens não europeias entrevistas, ele salienta menos o exotismo (da vegetação, dos costumes, das vestimentas, etc.) e salienta mais o que lhe parece e julga como fora de moda. Em Tristes Tropiques, anota: "Os trópicos são menos exóticos do que obsoletos (démodés)". Historicamente, as jovens nações crescem ultrapassadas porque são cópia tardia e servil do modelo metropolitano. A substituição do exótico pelo fora de moda alimenta o retorno imprevisto ao etnocentrismo, de que o etnógrafo quer, ou deveria liberar-se. Essa espécie particular e ambígua de etnocentrismo se nutre com a noção fundamental de pureza original.

    Em outra passagem do livro, o viajante cosmopolita comenta: "ter visitado a minha primeira universidade inglesa no campus de edifícios neogóticos de Daca, no Bengala oriental, incita-me agora a considerar a Universidade de Oxford como uma Índia que tivesse conseguido controlar a lama, o mofo e as exuberâncias da vegetação". Depois da colonização britânica, ter visitado em Daca a universidade cópia de Oxford leva-o a considerar a qualidade do que é europeu: o controle da lama, do mofo e das exuberâncias da vegetação.

    Já Paulo Eduardo Arantes é mais feliz na análise do pensamento francês que funda a Universidade de São Paulo: "afinal um pastiche programado em início de carreira é bem melhor do que uma vida inteira de pastiches inconscientes". Robert Schwarz acrescenta que Paulo "procura enxergar nas constelações um pouco esdrúxulas e por assim dizer defeituosas do esforço filosófico local, historicamente inevitáveis, a revelação de aspectos reais da filosofia europeia, que nas suas condições de origem não ficavam patentes".

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